O Que é o Yoga | Origem e Metamorfoses
Saiba o que é o yoga. Este artigo é sobre a origem e sobre os conceitos e as épocas principais da disciplina. Ao longo do texto as palavras “prática”, “disciplina”, “cosmovisão”, são utilizadas como sinónimos de yoga. O texto é uma transcrição de um vídeo do curso de história do yoga. Assim, apresenta uma estrutura frásica menos cuidada, menos formal e eventuais muletas verbais. No entanto, ainda assim, o Autor decidiu partilhar estes “apontamentos” pois considera-os fundamentais para instrutores, estudantes e interessados em geral, que pretendem saber o que é o yoga.
Qual a Antiguidade do Yoga?
É difícil datarmos o início do yoga. Muitas vezes nós vemos nas redes sociais, e em websites, coisas que não têm fundamento. Quando afirmamos algo, temos que ter uma sustentação, temos que ter evidência, temos que ter factos. Não podemos dizer que a prática tem 7 ou 8 mil anos, como eu já ouvi por aí. Isso é uma crença.
Assim, devemos procurar evidência sobre o conhecimento do que se sabe até aos dias de hoje. Aquilo que se sabe, numa possível cronologia, é que o Yoga não existia antes, como um sistema estruturado, um sistema de prática, antes do ano 500 a.C.. Então vamos começar por ver que na antiga civilização do Vale do Indo, hoje na zona do Paquistão, existiram civilizações importantes, como Mohenjo-daro e Harappa, onde encontraram alguns selos arqueológicos.
Os Proto Yogues: Vrātya, Brahmacārin e Keśin
Há uma imagem da arqueologia, que é chamado de selo de Śiva, o pāśupata. E há muita especulação à volta disso, se naquela altura já existia yoga ou não. Bom, de acordo com os historiadores, e de acordo com a investigação disponível, não podemos concluir isso. Depois há quem se refira ao proto yoga, ou seja, existem algumas especulações nos textos antigos, como nos Vedas, mais ou menos escritos 1500 anos antes da Era Comum, no caso do Ṛg Veda. E vemos aqui referências a alguns indivíduos. Também vamos falar aqui sobre os Vrātyas, os brahmacārins e outros proto yogues, mas não eram propriamente yogues, mas ascetas que tinham algumas práticas próximas do que mais tarde se convencionou um sistema prático. E essas práticas foram depois apropriadas e modificadas, nas tradições subsequentes.
Devemos então também, aqui nesta altura, mais ou menos 500 anos antes da Era Comum, com o nascimento de Buda e de Mahavira, os fundadores do Budismo e do Jainismo, respetivamente, que também por causa do seu esforço pessoal, muitas vezes ascético, no meio das florestas, na natureza, também eles acrescentaram dimensões éticas e contemplativas à disciplina. Essencialmente o Yoga nesta altura era uma prática contemplativa, não existiam posturas, isso apareceu mais tarde.
Se bem que nós podemos sempre argumentar que quando se pratica a meditação é necessário uma postura, portanto qualquer Yoga tem sempre uma postura. Só que aqui a postura é feita durante uma hora, ou durante quatro horas para os meditadores experientes. Além disso, a palavra āsana no texto do Yogasūtra não significa postura, significa assento. Se um āsana é um assento, então a pessoa deve ficar sentada. Assim, āsana como postura só emergiu bem mais tarde, na época Medieval quando surgem as primeiras posturas de pé.
O Yoga Clássico
Existe um período Clássico, que muito se confunde com o Yoga Clássico hindu. No entanto, a palavra Clássico também tem muito que se diga, porque deixa de fora algumas escolas, nomeadamente a Escola do Yogācāra do Budismo, e outras Escolas que foram muito importantes para o Yoga. Há uma questão que nós encontramos muito nos textos, é que nós não temos as datas, ou seja, não sabemos datas nem sequer quem foram os Autores. Quem foi Patañjali, o Autor do Yogasūtra? Não há fotografias, nem sequer sabemos se era um nome próprio. Muito provavelmente, Patañjali não era um nome próprio. Podia ser um compilador, um editor, como nome Vyāsa, mas não é o nome próprio de uma pessoa. E depois havia vários Patañjalis, vários compiladores, vários editores, nas diferentes tradições indianas.
O Yoga Medieval
O Yoga Moderno
Quanto ao início do Yoga Moderno, eu aqui considero que é o século XVI. Contudo, a Elisabeth De Michelis, uma historiadora conceituada, considera o ano de 1902. Porquê? Porque nesta altura o Swami Vivekananda veio da Índia para o Ocidente. E foi nesta altura em que a disciplina começou a entrar, mais nos Estados Unidos, depois em Inglaterra, e depois o expandiu-se por toda a Europa. Portanto, ela considera como o início do Yoga Moderno o ano de 1902, portanto o início do século XX. No entanto, eu faço aqui uma distinção. Considero o início a partir do século XVI, com os portugueses na Índia e o seu conhecimento dos Jogues de Goa. No entanto, a Idade Moderna, para a História Clássica, iniciou com a conquista de Constantinopla no ano de 1453 e durou até 1789, com a invasão da Bastilha.
Mas comparando com a época Contemporânea do yoga, há quem refira o final da década de 1960. A partir de 1974, nós temos mais liberdade, saímos de um regime fascista e, portanto, começamos a ter mais liberdade em Portugal. É a partir dessa altura que começam as aulas posturais. No ano de 1973, com a Maria Helena Freitas Branco. Antes disso, não quer dizer que não houvesse aulas posturais, mas não sabemos. Não há dados fiáveis, e há uns poucos testemunhos. A história oral também é importante, de qualquer forma, faltam dados para afirmar com toda a certeza que já existiam aulas posturais na década de 1960.
O Yoga Contemporâneo em Portugal
Contudo, no ano de 1921, Fernando Pessoa, poeta, com o pseudónimo Fernando de Campos, traduziu o livro “Introdução ao Yoga”, da Annie Besant. Nós agora estamos na época do Yoga Contemporâneo. O que nós praticamos hoje é diferente daquilo que era praticado na época Medieval ou na era Clássica, em que o Yoga era principalmente meditação. Acontece que no ano de 1923 existiu um curso de Rāja yoga em Lisboa, promovido pela Sociedade Teosófica. Pouca gente sabe disto. A comunidade portuguesa julga que a primeira professora foi Maria Helena Freitas Branco. Está errado. Eu sei isto porque andei nos Arquivos da Biblioteca Nacional de Portugal e na Torre do Tombo. Assim, o início das aulas de Yoga foi nessa altura, com esse curso. Logo, o Yoga Contemporâneo em Portugal começou na década de 1920, com as práticas não posturais. Espetacular, não é? Saiba mais sobre: hatha yoga o que é.
A Origem do Yoga
Existem algumas referências à palavra Yoga nos textos antigos da Índia. O Ṛg Veda é um texto indiano e, portanto, faz parte dos quatro Vedas principais. O Ṛg Veda tem hinos, hinos védicos, que foram provavelmente escritos entre 1200 e 1500 antes da Era Comum. É um texto que tem 3200 a 3500 anos. Esse texto refere o ṛṣi e o keśin. Quem eram estes indivíduos? O ṛṣi e o keśin eram ascetas, assim como o brahmacārin, referido no Atharva Veda, que é um texto posterior, talvez escrito 400 ou 500 anos depois do Ṛg Veda, e o vrātya também era, no fundo, um asceta. Portanto, eram indivíduos, por exemplo, os vrātyas, que tinham cabelos compridos, andavam com pouca roupa, alguns até andavam nus, praticavam penitências.
Por exemplo, alguns ficavam com um braço do ar durante anos, até o braço mirrar, e o braço encurtava, permaneciam só com uma perna durante anos, faziam equilíbrio numa perna, que também acabava por mirrar, ficando incapazes de andar. Quer dizer, faziam trinta por uma linha, enterravam-se até ao pescoço… só para dar alguns exemplos. Coisas que atualmente já ninguém faz na Índia, não é? isto na Índia, no contexto indiano. Nada disto é yoga, mas foi com esses movimentos de ascetas errantes que encontramos ideias que, mais tarde, ingressaram na disciplina yoguica.
Buda e Mahāvīra
A vida de Buda e de Mahāvīra, fundador do jainismo, é relativamente conhecida. Eles eram meditadores experientes. Um alcançou a Libertação debaixo de uma figueira, após horas e horas a fio a meditar, e o outro foi ao sol do meio-dia, debaixo de um sol forte. Portanto, o que é que eles têm em comum? O que é que eles fizeram? Ambos praticaram tapas, as penitências, que é uma disciplina que encontramos mais tarde no Yogasūtra. Eles fizeram austeridades com o corpo. Agora, nesta altura não há propriamente uma referência a yoguis nos textos antigos. Nós não encontramos nos textos a palavra yogui ou yoginī, o que demonstra do ponto de vista literário que não existia uma prática. Claro que o Ṛg Veda já tem ali referências à palavra, mas aí a palavra yoga significava juntar dois cavalos.
A palavra significava muita coisa, como veremos mais à frente. E nós estamos habituados a pensar que a disciplina é essencialmente, ou só é, uma prática postural. Bem, nunca o foi. Na época Medieval, na época Antiga, a prática nunca foi postural, como hoje é. As posturas de pé, por exemplo, surgiram bem mais tarde, já na Era Comum, a partir do século X ou século XI. Nessa altura começamos a ter sistemas Haṭha que incluem posturas, porque até aí não havia.
O brahmacārin era um indivíduo celibatário, portanto, dedicado à castidade, não tinha companheira ou companheiro, não tinha filhos, dedicava-se no fundo à devoção religiosa. E nesta altura, as práticas da religião védica, que é anterior ao hinduísmo, eram práticas muito de devoção à natureza, aos deuses do lar, aos deuses da atmosfera, entre outros deuses.
O Cosmo no Antiga Religião Védica
Podemos afirmar que, nesse período, existiu alguma zoolatria, isto é, a adoração dos animais. O Cosmo era entendido como o resultado de forças místicas e sobrenaturais, forças difíceis de descrever para o homem Antigo. Havia o deus do trovão, o deus da chuva, o deus dos mares, os Maruts, os deuses da atmosfera. É nesta altura que também se vai desenvolver uma coisa importante, que é a fogueira védica ou fogo védico. Porque com esse fogo, com essa fogueira védica, através do ritual yajña, queimavam-se legumes, oferendas, e diferentes tipos de alimento. Essas oferendas depois de queimadas na fogueira, faziam com que o fumo subisse, e esse fumo ascendia até aos deuses. E acreditava-se que, através desse cheiro agradável, o alimento era oferecido aos deuses.
Portanto, havia aqui uma parte mais devocional, ritual, de oferenda aos deuses. Qual a razão das pessoas oferecerem alimentos aos deuses? Porque depois obtinham favores em troca. Se o indivíduo agradasse aos deuses do mar, aos deuses da terra, e aos deuses do lar, depois também recebia, poderia receber alguns favores. Além disso, nesta altura, existiam estes indivíduos, estes ascetas antigos, e não há referências a yoga como um sistema prático. Só mais tarde é que surgiram algumas técnicas que, depois de desenvolvidas e aprimoradas, ingressam no corpus da disciplina.
E Hoje?
E o que dizer dessa ideia de que o que é praticado hoje é um Yoga que tem uma continuidade no passado? Há alguma ligação entre as práticas de hoje e as práticas antigas? É óbvio que a resposta é complexa. Há momentos na Índia em que existiram interrupções na prática. Inclusive, um conhecido autor indiano foi em peregrinação pela Índia procurar por yoguis e não os encontrou. Ele diz “tentei encontrar um yogui para me explicar estas práticas, mas não encontrei ninguém”. Será que estavam todos para o Tibete? Estavam todos nas cavernas? Foram para os Himalaias? Isto está no livro do David Gordon White, “A Biografia do Yogasūtra”. Portanto, na opinião do White, esta ideia de que o yoga é um produto indiano com continuidade temporal é falso. Há cortes temporais, e ainda por cima as práticas e doutrinas sofreram muitas metamorfoses e sincretismos.
O Contexto do Yoga
Para estudarmos a disciplina é preciso conhecer o contexto. É algo que não se vê muito por aí, porque as pessoas falam de yoga, até mesmo muitos que se dizem peritos em técnicas, mas depois não explicam o contexto da prática. Isso faz toda a diferença. E portanto, eu recordo que também não se pode falar de um peixe sem falar do aquário e da água, porque o peixe vive na água, e vive num aquário, ou num rio. Isso é contextualizar. Há muitas premissas que determinam a transformação das coisas.
Assim, o meio sociocultural transforma o indivíduo e o indivíduo interage e transforma o meio. Portanto, estas sinergias são muito importantes do ponto de vista sociocultural e também para explicar as metamorfoses na prática. Na época Antiga não havia um sistema estruturado de práticas. É obvio que o Yoga não tem nem 7 mil nem 5 mil anos. Além disso, muitas vezes, e com respeito pelas tradições e pelos gurus, os mestres e gurus dizem uma coisa e os discípulos repetem como papagaios, sem se interrogarem, sem utilizarem o raciocínio crítico. É óbvio que, sabendo o que sei, eu tenho o imperativo moral de me confrontar. Tenho que pesquisar as fontes para ter a certeza de alguma coisa, se é que consigo ter a certeza de qualquer coisa, não é? Mas é claro, é óbvio que as coisas podem mudar, pois a investigação ainda não acabou.
O Selo de Śiva
O que é que existe de interessante na antiga civilização do Vale do Indo? Existem vários selos que foram descobertos na década de 1920, pelo arqueólogo John Marshall e sua equipa. Eles encontraram os selos M1186 e o M304. E é com base neste selo, mais precisamente o M304, que muitos indivíduos afirmam que o que aqui está é um yogui. Devido à postura contemplativa – isto talvez seja uma postura de yoga –, depois dizem que há três faces, que associam a Brahma, Viṣṇu e Śiva. O indivíduo do selo – o pāśupati – está a olhar para três locais e, portanto, julgam que é uma representação de um yogui. E mais, também deve ser o o rei dos animais, porque tem um adorno com chifres, como uma coroa, e também se vê no selo um tigre, um búfalo e um rinoceronte. E com base nesta especulação, fez-se uma interpretação extensiva.
Mas a verdade é que esse argumento não colhe, não convence ninguém. Há outros autores, e eu aqui refiro só aqueles que são mais conhecidos, como por exemplo, o Stuart Ray Sarbacker e o seu recente livro “Tracing the Path of Yoga”. E ele refere que há aqui algum ceticismo considerável, ou seja, estas figuras sentadas, as figuras do Vale do Indo, aparecem em outros lugares, não é só na Índia. Eles aparecem em outros lugares, por exemplo, no Egito, e no Egito que se saiba não houve Yoga. Portanto, não há aqui a possibilidade de ligar essa pista arqueológica a práticas antigas. É uma elaboração muito exaustiva, muito elástica, dizer que a disciplina existiu nessa altura.
Outras Opiniões Sobre a Origem do Yoga
Outros dois historiadores, o James Mallinson e o Mark Singleton, escreveram o livro “Roots of Yoga”. Eles afirmam que a mais antiga definição que nós conhecemos vem num dos Upaniṣads, o Kaṭha Upaniṣad, que provavelmente foi escrito no século III antes da Era Comum. É um diálogo entre o Nachiketa e Yama, o Deus da Morte. O Nachiketa é um jovem, vai ter com o Yama, o Deus da Morte, depois ele tem direito a satisfazer desejos. Aí, ele pergunta a Yama o que acontece depois da morte, etc. Resumindo, o Yama começa a contar uma história e às tantas diz “olha, o que aprendeste agora foi Yoga”. Portanto, o que aí temos é uma passagem de um estado para o outro. É aqui, neste Upaniṣad, que há, de acordo com Mallinson e Singleton, a primeira definição da disciplina prática.
Além disso, há outro facto interessante sobre os guerreiros antigos desta altura, os guerreiros moribundos, que devido à guerra se encontravam quase a morrer. Chamava-se Yoga ao facto de eles transferirem a sua consciência para o Sol. Abandonavam o corpo, transferiam o seu espírito para o Sol e isso era considerado Yoga. Portanto, é um dos significados da palavra Yoga.
Mircea Elíade
A partir de meados do século XX, temos grandes historiadores, como por exemplo, o Mircea Elíade, que por acaso viveu em Portugal, na altura do Estado Novo. Ele foi adido cultural da Roménia, e a casa onde ele morou fica perto da Avenida de Berna. Foi um grande historiador, e ele fez a tese de doutoramento sobre Yoga. Ele estudou Yoga, o Xamanismo, e estudou religiões asiáticas. E ele disse então que a prática do Yoga era muito antiga, muito ancestral, já o próprio Buda, enquanto viveu na floresta, teria aprendido a disciplina yoguica com um mestre. Isso é o que diz o Mircea Eliade.
Entretanto, as coisas mudam. Porquê? Porque se conhecem mais factos, mais evidência, mais textos do sânscrito e começa-se a desconstruir um pouco este pensamento do Elíade e também do Feuerstein, que tem um livro muito interessante que é “The Yoga Tradition” ou “A Tradição do Yoga”, que está em português, editora Pensamento.
O George Feuerstein, também disse que o Yoga é antigo e que existia há 4 ou 5 mil anos. Acontece que estas ideias ainda circulam muito nas escolas Contemporâneas. Se calhar vocês vão a uma escola, aqui e ali, e alguns instrutores que leram o Mircea Elíade ou o Feuerstein, vão dizer “O Yoga tem mais de cinco mil anos”. Contudo, a nova geração de académicos não defende essa posição. Portanto, este proto Śiva não é propriamente o deus dos Yogues, como alguns escreveram. Vocês podem encontrar isto também no manual Routledge Handbook of Yoga and Meditation Studies, um livro monumental. Foi publicado em 2021 e é também um livro importante para quem estuda Yoga com base nos factos, não em crenças ou opiniões populares.
Geoffrey Samuel
O Geoffrey Samuel, no seu livro “The Originis of Yoga and Tantra”, refere que a única conclusão possível é que de facto nós não sabemos como interpretar esta figura do selo de Śiva. Além disso, a linguagem do Vale do Indo ainda não é conhecida, ainda hoje não é compreendida. Há autores que dizem que se calhar não era uma linguagem, o que ali temos são símbolos. Eles desenhavam imagens, um pouco como o homem do Paleolítico, nas cavernas, mas não havia propriamente um sistema elaborado ou complexo de comunicação. Estes símbolos não são uma comunicação clara para que se possa entender inequivocamente uma mensagem.
Portanto, deixo-vos aqui estas ideias porque, de facto, nós não sabemos o que é que o selo do proto Śiva quer dizer. Pode ser um feiticeiro, pode ser um sacerdote, não é de certeza um Yogui. E na Índia sempre houve muito esta tendência do indivíduo se colocar nessa posição. Ainda hoje, vocês vão à Índia, e eu vim de lá há 15 dias, do Sul da Índia, e todos os dias nós vemos pessoas de cócoras, eles ficam ali e trabalham assim, agachados. Quer dizer, isso é uma postura de yoga? Claro que não.
Conceitos Fundamentais
Por agora, também cabe dizer que a palavra tem um significado. Pode significar disciplina, ou um sistema de disciplina, e pode significar união, separação. Além disso, a Andrea Jain refere que a palavra Yoga que tem uma função discursiva.
Vejâ-se, por exemplo, o Kaṭhopaniṣad e o Śvetāśvatara Upaniṣad, textos escritos antes da Era Comum. E o Dhammapada dos budistas. O que é que nós vemos nestes textos? Eles referem a palavra Yoga como um sistema de restrição sensorial, de controlo dos sentidos, tipo pratyāhāra. O indivíduo deixa de ouvir, deixa de ver, deixa de sentir, deixa de cheirar, e portanto, bloqueia a atenção aos estímulos externos. Assim, fecha as portas dos sentidos e passa para outra fase que é a concentração. A concentração mental e, mais tarde, o samādhi e o nirvāṇa, que já são estados de absorção no objeto e de êxtase contemplativo. Portanto, aqui nós já temos uma disciplina.
Também temos outro texto muito referido, mas pouco estudado, o Yogasūtra.
O sistema Aṣṭāṅga, com as oito disciplinas, é um sistema essencialmente de meditação. Embora se fale em éticas, os yama e os niyama, e depois em āsana. No entanto, āsana significa assento. O próprio Yogasūtra não refere nenhum nome de postura, como nós conhecemos, a postura do cão, postura do gato, postura do cadáver. Não, o Yogasūtra não refere. São os comentários do Vyāsa que depois referem algumas formas de assento. As primeiras posturas foram na forma sentada. Mais tarde surgiram posturas de pé, de equilíbrio, já numa fase mais avançada, na época Medieval. Portanto, aqui o yoga também é visto como marga, isto é, uma via ou caminho.
Tipologias e Significados
Existe a clássica divisão dos tipos de yoga. Karma, o da ação, jñāna, o do conhecimento, bakhti, o estilo devocional, e por aí fora… rāja, kuṇḍalinī, nād, laya, etc. Portanto há muitos tipos de prática. E algumas pessoas perguntam: kundalini yoga o que é?
A palavra Yoga pode significar união, é proveniente da raiz verbal “yuj”, que pode significar juntar ou unir. E aqui é um sentido muito referido nos dias de hoje, as pessoas dizem “ah, significa união”. É a união do corpo e da mente, é a união de todos, a união do microcosmo com o macrocosmo e, portanto, a união do indivíduo com o divino. É muito popular, e também incompleta, esta ideia de que yoga é união.
Yoga como separação
Mas a verdade é que é um dos significados da palavra. Além disso, pode significar precisamente o contrário: separação. Este é o significado no Yogasūtra, em que há uma separação ontológica entre Puruṣa e Prakṛti, isto é, o Espírito e a Matéria, ou a Consciência e o agregado Corpo-Mente. Portanto, Puruṣa e Prakṛti são dois constituintes, ou duas dimensões da vida do Cosmo. Tudo tem uma inteligência subjacente, uma partícula de consciência. Além disso, tudo o que é visível e mesmo invisível, como o átomo, ou as galáxias distantes que nós não vemos, ou mesmo o mundo, têm sempre uma parte material. Isso é a Prakṛti.
E aí o Yogasūtra refere que o estado de Yoga é quando há uma separação entre a consciência e o corpo-mente. Ou seja, esse é o caminho. O Citta-vṛtti-nirodha é a cessação ou a diminuição das flutuações mentais ou a quietude da consciência. O que é que isso significa? É precisamente o caminho do indivíduo se ver a si mesmo enquanto consciência e não se confundir com a parte material, perecível, digamos assim, do corpo-mente.
O paradigma Corpo-Mente
E esta separação é diferente do paradigma Cartesiano corpo-mente. Para Descarte a mente estava mais acima, era superior, e o corpo estava mais abaixo, num plano inferior. A mente é masculino, o corpo é feminino. A mente é solar, o corpo é lunar, e por aí fora. O Homem, em busca de sentido para a vida, constrói polaridades. E inventa teorias e retóricas, que são instrumentos de Poder. Contudo, nós hoje já sabemos que a mente está em todo o corpo. No livro “A Biologia da Crença”, do Bruce Lipton, doutorado em Biologia, ele apresenta evidência recente sobre os recetores da mente que estão por todo o corpo. Logo, ele conclui que a mente está em todo o corpo e não apenas na cabeça.
Quando nós praticamos Yoga postural, nós não estamos a fazer apenas uma prática para o corpo, mas sim a uma prática para a mente. E quando praticamos uma prática mental, também estamos a trabalhar com o corpo. Daí que esta separação que ainda persiste nos dias de hoje, em que a meditação é para a mente e o Yoga é para o corpo, para mim não faz sentido. Porquê? Porque a meditação faz parte da disciplina. E porque o corpo e a mente são um agregado funcional. É um bocado como dizer “Olha, uma moeda só tem cara”, então e a coroa, que é outra parte da moeda? uma moeda tem duas faces.
Yoga como função discursiva
Conforme referi antes, há uma autora norte-americana, a Andrea Jain, que afirma que nas narrativas contemporâneas e nas histórias que nós contamos aos outros, a palavra Yoga tem uma função discursiva. Quando se diz “ah, os yoguis estavam ali a praticar numa sala”. O nosso imaginário é veiculado por essa palavra, para a sala de prática, e a palavra significa os indivíduos que se vestem de uma certa forma, que comem de uma certa maneira, que têm um tipo de comportamento, que utilizam uma linguagem particular. Portanto, estão implicados os hábitos do corpo, as atitudes, as crenças.
Nós vamos falar sobre tudo isso no nível 2 quando abordarmos o tema da Cultura e da Espiritualidade Contemporânea do Yoga. Nessa altura, vamos ter que falar sobre a Nova Era. Portanto, Yoga é uma função discursiva. Quando a palavra aparece ou quando é utilizada nas redes sociais, ela constrói identidades e significados. No entanto, também ergue barreiras e exclui outros, em função da classe socioeconómica ou étnica. Sem o saberem, os instrutores excluem muitas pessoas da prática, principalmente os corpos a jusante da imagem corporal estereotipada: magreza, flexibilidade e branquidão. É um problema por resolver.
Linguagens do Poder
Quando nós vemos nas redes sociais uma fotografia de uma postura, o nosso imaginário é transportado, “ah, aquela postura é difícil, aquele corpo consegue fazer isto”. É uma narrativa de Poder, muitas vezes sublinhando que ela consegue fazer aquilo. Os outros não conseguem: venha daí estudar comigo, porque eu é que sei. Além de competição, nós vemos aí linguagens do Poder, que se cruzam com show-off e narcisismo, em alguns casos. Até pode ser uma estratégia comercial para angariar alunos, porque o adepto que consegue fazer aquilo pode ensinar essa técnica aos outros, que o vão seguir. Portanto, é uma estratégia para construir Autoridade, e subsequentemente, é uma estratégia do Yoga capitalista. É uma opinião pessoal, é óbvio que está sujeita a contraditório e a opiniões diferentes. No entanto, é bom analisarmos os fenómenos de diferentes ângulos, para sairmos de posições essencialistas.
Yajña como ritual de passagem
O instituto do yajña começou com o antigo sacrifício da religião védica, com a fogueira, e com as oferendas desse sacrifício. Era um ritual de oferta aos deuses, e com isso o indivíduo ascendia nos patamares ontológicos. No fundo acreditava-se que os indivíduos que participavam no sacrifício estava mais próximo dos deuses. A partir daí surgiram os intermediários, os sacerdotes Brâmanes, uma espécie de padres, que acabavam por mediar a passagem do mundo profano para o mundo segrado. Os seres humanos, desde a alvorada da civilização, sempre procuraram harmonia, procuraram equilíbrio, buscaram um Cosmo harmonioso, bonito, belo.
E o ser humano faz parte dessa ordem cósmica. Portanto, há aqui um processo ritual e mais tarde, uma homologia cósmica. O indivíduo achava-se igual ao Cosmo. O microcosmo é igual ao macrocosmo. O que está em baixo é igual ao que está em cima. E, portanto, o sacrifício é uma espécie de ponte para o sagrado. O tema do profano e do sagrado está sempre presente, até no dia a dia das culturas contemporâneas. O indivíduo descalça-se e entra num templo, porque é sagrado. Deixa de fora os sapatos, que estão sujos por caminhar no mundo. Logo, também a pureza, os ideais de pureza do corpo e as formas como o corpo se veste, estão muito ligadas a estas tradições espirituais e religiosas, porque são mecanismos que alavancam essa passagem para o sagrado.
Internalização do sacríficio
Só que o Yoga internaliza o sacrifício. O sacrifício que era externo, através da fogueira e das oferendas aos deuses védicos, vai ser interno a partir de Buda, Mahavira e outros ascetas indianos. Eles começam por praticar técnicas como a meditação e outras penitencias, como longos jejuns e silêncios. Isto são sacrifícios interno. Assim, passa a haver uma internalização do sacrifício. A palavra sacrifício decompõem-se em sacros e ofício: uma atividade sagrada.
Soma: a bebida sagrada
Esse ofício sagrado implica fazer algo e obter poder. E depende um pouco da crença de que cada um. O adepto acredita que está a fazer o bem, não só para si, mas para toda a comunidade, e com isso acredita que está mais próximo do divino. Depois também existiu a soma. A soma era uma bebida referida no Ṛg Veda, mas ninguém sabe ao certo se era um cato, ou uma ephedra ou outro tipo de planta, cujo sumo era ingerido. Isso provocava visões contemplativas, e, portanto, a soma era utilizada em certos rituais.
- Ṛta, a ordem cósmica
A palavra ṛta tem a ver com a ordem cósmica, que se prerende harmoniosa e ordenada.
O ser humano, enquanto microcosmos, é parte de um Todo maior, que se acredita possuir consciência. Ainda hoje nós estamos à procura do nosso lugar no Cosmo, às vezes no lugar da própria vida. Enfim, depende da pessoa.
- O dharma
Um outro conceito importante no Yoga tradicional que é a ideia de Dharma. É uma palavra recorrente. Pode significar lei, missão, regras a cumprir. Dharma é uma palavra polissémica. Como muitas palavras no sânscrito, elas têm vários significados. Dharma também tem vários significados.
Tapas: o calor da disciplina
Há práticas que aparecem nessa literatura antiga, na literatura védica, como o tapas e o mantra.
O tapas tem a ver com aquecer o corpo. Porque, como já vimos com o budismo e com o jainismo, a fogueira védica já não servia para o sacrifício. É o tapas que gera o calor interno. Portanto, o calor interno – o do corpo – e não o calor da fogueira védica, passa a mediar o ritual de passagem entre o profano e o sagrado. Isto opera através da purificação do corpo, através do alimento, do corpo flexível e adamantino, como referem os textos medievais do Haṭha: “o corpo bem assado” para a experiência do êxtase. Porque o nirvāṇa, ou mokṣa, pressupõe uma modificação radical da fisiologia, opera a expansão da consciência individual.
Por isso o adepto tem que se preparar, da mesma forma que ninguém coloca os dedos numa ficha elétrica. 220 volts é demasiada energia, então é preciso um transformador para trabalhar com essa energia. Da mesma forma, através do Tapas, as práticas continuadas servem para preparar o corpo e a mente, para gerar calor gradualmente. Por exemplo, através da prática do prāṇāyāma, os exercícios de respiração consciente.
Mestre e Discípulos
O Yoga tradicional indiano tinha dois elementos importantes: o guru e o discípulo ou śiṣya. O guru transmitia o conhecimento experiencial ao discípulo, no contexto do Āśrama, geralmente a casa do mestre, que era no fundo uma comunidade onde todos partilhavam valores. Um indivíduo tratava de lavar a loiça, outro do gado, outro da fogueira, e, portanto, funcionava como uma comunidade indiana – o gurukul.
No entanto, esse modelo não faz parte da cultura ocidental. Nós não temos gurus e a figura mais próxima do guru indiano é o Padre. Assim, por várias razões, mas sobretudo devido aos escândalos sexuais e ao aproveitamento emocional preconizado por alguns mestres, como inclusive ocorreu recentemente em Portugal, cada vez mais as pessoas preferem um yoga pós-linhagem, isto é, sem seguir os ensinamentos ou doutrinas de um mestre. Se você não tem tempo para ser discípulo, porque procura um mestre?